domingo, 30 de maio de 2010

Quando o nariz se junta aos joelhos....


ADIAMENTO

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...
(Álvaro de Campos)


Estava este poema, num papelzinho amachucado... entre uma camisola de lã e um blusão de cabedal preto.
Cheiro a erva-doce....

30 comentários:

  1. Espero que não espelhe a tua disposição, a sério.

    >Uma semana boa, zoginha.

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  2. E quando temos destes encontros com a poesia, nada melhor que partilhá-los.
    Obrigada!

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  3. Que maravilha, quando damos assim de repente com um poema destes. Somos levados a interrogar-nos: em que momento da nossa vida estas palavras foram importantes ao ponto de as passar e guardar?
    Bjs

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  4. Oi Magy
    esse adiamento é tudo que preciso.
    " ... tenho sono como o frio de um cão vadio"
    e amanhã me será igual a todos os amanhãs .
    Estou a adiar os sonhos.
    meus abraços da semana

    ...tenho tanto a te agradecer florzinha pela sua delicadeza , muito me comove e fico sem palavras.Claro que nao vou usar , deixo o perfume entre as minhas blusas finas de verão ou as quentinhas do inverno. Precisa durar em todas as estaçoes.Adorei.
    Bjinhos e retribuirei em brve, com algo bem brasileiro - pra nao esqueceres mais.

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  5. Poema com muito que se lhe diga, mas há muitos dias em que tento não pensar muito no amanhã, fico-me pelo dia de hoje e quando dá, por algumas coisas dos que ficaram lá para trás ;)
    Beijinhos para hoje

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  6. "O depois de amanhã", quando escreveu este poema de Pessoa, para mim já é amanhã...
    O tempo é muito relativo, espero que não esteja com o mesmo estado de alma com que devia estar o poeta quando escreveu este poema!
    Abracinho

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  7. Poema magnífico, amiga! E então a cheirar a erva-doce, quem resiste?? Mas não deixes passar amanhã, está bem? Não adies mais:)))

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  8. ainda há "amanhãs". com cheiro e erva-doce...
    há que "saltar" os dias.

    é bom ler-te...

    beijo

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  9. Querida MagyMay

    Vai por mim...

    Não deixes que o tempo por ti passe... tu és a dona do tempo, tu és a dona do teu tempo...

    Então... opta por seres tu a passar por ele, ao teu ritmo, até o desejares, até à eternidade...

    Beijinhos.

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  10. É fantástico! Estou a ler este texto a uma terça-feira e pergunto a mim próprio como é que esse Álvaro de Campos (deve ser bruxo... ) ia saber que depois de amanhã é feriado, sabendo nós muito bem, que neste país as coisas (incluindo os feriados) são tratadas em cima da hora?! Ou então foste tu que lhe deste a dica...
    ..................................

    Acabei de saber que o homem já se finou há uns anos largos. Portanto não foste tu. Desta vez safas-te, mas vou andar com um olho em ti e outro nos dias planificados. Amanhã.

    Abraço e sorrisos

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  11. Gostei deste poema e quase lhe snti o aroma a reva doce...não gosto é da adiar para amanhã...
    Bjs

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  12. São,

    Nem sei se te diga, nem sei se te conte...rsrs
    Fica à tua imaginação.
    Viva o salame de chocolate!
    Um abraço

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  13. Há,

    E que não é, que Pessoa e os heterónimos são sempre do meu agrado mas quando "encontro este" papelzinho é sempre um reencontro...

    E para mim, partilhar é prazer. Obrigado a ti também.

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  14. Teresa,

    Ai o momento...
    Foi de ajuste, ao momento ... a dúvida do existir amanhã (por contraditório que pareça) ...

    Beijinhos

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  15. Lis,

    Adiar sonhos dá montoeira deles e depois não lhe sabemos a ordem... uma chatice!
    Disso, falo de cadeira (lá vais tu ao google...rs)

    Menininha, que é isso de retribuir?... O meu blog não faz anos, ora!!!
    Cheirou e sossegou, brasileirinha.

    Abraço com um raminho de alecrim (como diz o nosso Xico)

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  16. Isa,

    Se o cavalo branco fala-se, diria:
    ... galopa-se-me o para a frente... cavalga-se-me o que está lá para trás... e repiso o agora.

    Não me perguntes qual cavalo branco, inventei-o agora, deu-me jeito...rsrs

    Beijinho de hoje

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  17. Maria Teresa,

    Neste momento, o meu estado d'alma não é de adiamentos.
    Não pode, eu tenho o dom da vida e o privilégio de conviver com os outros, não é?

    Abracinho

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  18. KERIDA MAGY

    ...óptima escolha,
    este poema de Álvaro de Campos!

    ...não sei se somos da mesma geração,
    mas que temos gostos semelhantes...
    ...não há dúvida...felizmente!
    (tenho 48 anos)

    xis létinha


    "Os Filmes da Minha Vida!" - http://letinhaletinha.blogspot.com/
    "Sonhos Sonhados" - http://birdfleur.blogspot.com/

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  19. Escolheste um poema fabuloso do meu poeta preferido.
    Estás cheia de sorte por teres essa camisola de lã e o blusão de cabedal preto a conviver com tal preciosidade.
    Levarei a manhã a pensar nesse cheiro a erva-doce.... e talvez mesmo depois de amanhã...
    Querida amiga, bom feriado.
    Beijos.

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  20. Justine,

    E nós andamos a adiar um reencontro, verdade?
    Estamos em tempo de jacarandás, óptimo para as avenidas de Lisboa...rs

    Abraço, apertadinho

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  21. Heretico,

    Há amanhãs com cheiro a erva-doce...
    (mesmo que a alma doa)

    Beijo

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  22. Ó Meu Guru,
    ... tenha eu presente o que tu me dizes e serei rainha do meu reino...

    Beijinhos e beijinhos e beijinhos

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  23. Legível,

    Safei-me deste "diz que disse" que passou... e agora do próximo????
    ... Sim, que nestas coisas há que confirmar, testar e nada como repetir mais um feriadito para esclarecer as hostes!!!

    Abraços, resmas deles....

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  24. Lilá(s)

    E eu que ando numa de preguiceira... e isto é um adiar, adiar, adiar...rs

    Boa semana
    Beijinhos

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  25. Létinha,

    Fico contente por gostares. Sabe bem, de quando em vez Álvaro de Campos.

    Abraço

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  26. Nilson,

    A bola de cristal intui!
    Álvaro de Campos, uma certeza.
    Cheirinho a erva-doce um mistério.............
    ...trinados da imaginação

    Beijo de boa semana

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  27. Olá Vieira Calado,

    Percebi, que poeta gosta de poeta.

    Beijos

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  28. O que é fascinante nos heterónimos de Fernando Pessoa (FP) é a versatilidade de cada um deles dentro do perfil que lhes foi atribuído, cumprirem esse desiderato do seu Criador.

    Não sei, não sou capaz de arriscar, mas alguma vez FP terá imaginado ser suplantado pelos seus heterónimos?
    Surpreendido, sim.
    No meu modesto ver, em dois níveis:
    1. Pelo rasgo de cada um;
    2. Pela coerência de cada um.

    Será arriscado dizer que apenas nas «Cartas a Ofélia» FP se deixou guiar pela enfraquecida racionalidade e chegou a sublimar esse desprendimento com a célebre «Só não é ridículo quem não escreve cartas de amor»?

    Bem.

    Dois pontos:
    Neste poema há três questões relacionadas com o tempo:
    1ª. O adiar: tudo será diáriamente decidido para o dia seguinte (As perspectivas futuras eram assim tão incertas, indiciavam tantas angústias?)
    2ª O presente: proporcionava um certo conforto, no entanto, não era pleno, não esgotaria toda a disponiobilidade emocional (Por causa da nostalgia da infância);
    3ª A infância: longínqua, tranquila, protegida, segura (Agora, e sobretudo amanhã; não acalenta paz nem resolve a inquietação do futuro: sim; não?)

    Fisicamente, Alvaro de Campos necessitava de pensar sentado, deitado, livre de desafios físicos. Imobilizar-se-ia para pensar (Ha muita gente qu tem de ocupar as mãos -- Trabalhos manuais; pequenas tarefas -- para pensar.

    Quando finalmente tudo estava pensado e estruturado, então sim, a agorafobia desaparecia.

    Ora, estruturar e pensar está de acordo com os hábitos, a rotina de um engenheiro; hesitar tanto, imobilizar-se assim, não.

    Mas, afinal o que nos delicia no FP e nos seus heterónimos, é ou não é as suas aparentes qualidades e as suas inesperadas contradições?

    Nota final sobre a ilustração:
    A senhora que está deitada, repousa e sentir-se-á muito bem, frente a um mar que até lhe parecerá submisso.
    Com a cabeça apoiada no saco dos objectos pessoais, é espantoso o zelo que terá colocado no posicionamento dos sapatos, antecedendo o estiramento do corpo.

    Há um sentido de ordem permanente.
    Até no lazer.

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  29. Meu caro JPD,
    Sempre um gosto ler-te... que me deixas brilhozinhos.
    Resumindo, muito... FP e heterónimos fascinam, provávelmente pela sensibilidade única no vasculhar do labirinto da mente.

    A "madama" é certamente daquelas que no carrinho do supermercado, pôe as compras por tamanho e grau de sensibilidade

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